Combinaram de se encontrar, no cume da montanha, em dia e hora incertos. Não sabiam que trilha caberia a cada um – a escalada seria solitária -, nem a cordilheira na qual o monte se erguia. Do significado de subir tão alto, também não tinham ideia clara. Talvez vencer os obstáculos que interpunham entre eles, concretizar desejos – inclusive aqueles planos de antes de serem amantes, que há muito faziam pulsar o sangue nas veias, insuflando-lhes o coração.

Erme e Shebba amavam-se daquele amor proibido que, se irritava os deuses, mais enfurecia os mortais. Sempre que possível, contrariavam o medo e, movidos pela saudade, encontravam-se entre as folhas baixas das árvores, para o toque de mãos, o beijo raro, pouco demorado, suficiente para não serem flagrados pelo olho julgador, que esticasse até eles os dedos da denúncia, e os condenasse à morte ali mesmo, enterrando os indicadores no peito.

A janela do primeiro encontro dava para o mar. Cores e formas marinhas compuseram o cenário do teatro da paixão, cujo espetáculo ficava mais bonito quando Netuno acendia o candeeiro da Lua. Mas a lírica não elida o drama. O pélago tornou-se rota de fuga para Shebba e Erme, sobretudo quando a cidade era só olhos, ouvidos e boca, da qual escorria o veneno da maledicência, e os enamorados careciam da brisa oceânica, para se purificarem do ódio.

A Humanidade sabe bem – não importa o tempo, o espaço ou o suporte -, que os concubinos tentam, de várias maneiras, dissimular a paixão que os consome, tal qual o fogo dos infernos, nos sôfregos dias que sucedem a revelação. Buscam com isso ganhar tempo, na esperança de achar solução para conflitos concretos – os de dentro de si mesmos – e os do porvir – no plano externo -, no caso de vir a público esse novo capítulo da velha história da vida íntima.

O que os amantes de todas as eras e lugares não sabem, é que a paixão, diferente do amor – que exala o delicado perfume da realidade -, evola a fragrância abrasadora da fantasia. Esta elimina o odor dos vícios, dissolve a olência do cotidiano, e espalha-se pelos recintos tal qual um anjo bailarino, cuja coreografia contrasta, absurdamente, com a síndrome dos movimentos repetitivo-controlados que, secularmente, acomete a coletividade.

A essência que os amantes emitem, porém, tinge o anonimato, não importa a localidade do benquerer, e gruda na pele dos mal-amados como vapor de ácido, causando-lhes coceiras, ardências nos olhos, comichões nos ouvidos, enfim, um mal-estar constante que os fazem aguçar a vista, cotejar o próprio esgar com a carantonha de outros recalcados, até descobrirem a fonte secreta do entusiasmo, da qual eflui o bálsamo – para eles insuportável – da felicidade.

Como naqueles dramas criminais, nos quais a dupla de facínoras, após ter a identidade revelada, separa-se, para dificultar a caçada policial, Erme e Shebba, sentindo os perigosos eflúvios das más-línguas, juraram amor eterno, acordaram o encontro na montanha, e embrenharam-se por veredas opostas, após disseminarem o álibi segundo o qual haviam-se tornado inimigos mortais, um acusando o outro de coisas que fariam corar qualquer má pessoa.

Este conto, de autor anônimo, termina com reticências. Não se sabe se os amasiados esbarraram na metáfora, quer dizer, na montanha, chegando ao ápice da ventura, ou se prosseguem transpondo fronteiras. Podem estar em qualquer cidade e, se o tempo é impreciso, não surpreenderia encontrá-los por aqui, um vendendo letras, o outro fotografias, sonhando com o dia em que o destino decida, enfim, reuni-los, e que ninguém tenha nada a ver com isso.

William Costa: jornalista de carreira e escritor paraibano, editor do suplemento cultural Correio das Artes, cronista do jornal A União, tem vasta experiência em veículos de imprensa e é autor do livro de crônicas e contos Para tocar tuas mãos - Chronesis.

E-mail: wpcosta.2007@gmail.com