Prosseguindo na peregrinação pelo romance “Grande Sertão: Veredas”, de João Guimarães Rosa, vamos encontrar outra personagem que vive uma história das mais curiosas. Quem relata o sucedido é um Jõe Bexiguento, “duro homem jagunço, como ele no cerne era.” Homem de ideia curta, não variava, herdou do pai a sina de viver e jagunciar; para ele as coisas não se misturavam, eram bem divididas, separadas. “De Deus? Do demo? Deus a gente respeita, do demônio se esconjura e aparta…” (p. 237). E assim, com essa filosofia fatalista, ia vivendo em paz consigo mesmo e jagunçando.
Até que um dia, Jõe Bexiguento contou. O causo aconteceu no arraial de São João Leão, no sertão do Jequitinhonha, região mais pobre dos Gerais, lindeira da terra dele. Existia por lá uma mulher de nome Maria Mutema, “pessoa igual às outras, sem nenhuma diversidade” (p. 238). Uma noite, assim no mais, o marido dela entregou os pontos, morreu de madrugada. Ela invocou por socorro, o vizindário compareceu, que o lugarejo era pequeno. O morto não tinha sinais, não dava mostra, estava de boa saúde, tudo indicando ataque do coração, Na tarde do mesmo dia foi enterrado, bem enterrado.
“Maria Mutema – ele contou – era senhora vivida, mulher em preceito sertanejo. Se sentiu, foi em si, se sofreu muito não disse, guardou a dor sem demonstração. Mas isso lá é regra, entre gente que se diga, pelo visto a ninguém chamou atenção” (Idem). Agora, o que chamou atenção foi a repentina religião da mulher. Vestida de preto, ia à igreja todo santo dia e, mais ainda, se confessava a cada três com o vigário Padre Ponte. “Dera em carola e virou um lenho seco.” Estranho, muito estranho!
Meio gordo, descansado, na meia idade, Padre Ponte cumpria as obrigações de vigário. Fazia sermão, atendia de dia e de noite, era caridoso. Vigário de mão cheia. É verdade que havia gerado três filhos com outra Maria, dita a Maria do Padre, “que governava a casa e cozinhava para ele.” Os meninos da Maria do Padre, bem criados e bonitinhos, levavam vida normal. Ninguém maldava, aquilo era mais ou menos comum naqueles ínvios arredios de civilização.
O povaréu, porém, logo pegou a estranhar que Maria Mutema tivesse assim tantos pecados a confessar. Notou que Padre Ponte revelava visível desgosto ao ouvir as confissões da viúva. Alguma coisa acontecia que ele não podia transmitir a ninguém por causa do segredo da confissão. E o coitado do Padre Ponte pegou a minguar. “Foi adoecido ficando, de doença para morrer, se viu logo. De dia em dia, ele emagrecia, amofinava o modo, tinha dores, e enfim encaveirou, duma cor amarela de palha de milho velho, dava pena. Morreu triste…” (p. 239). Desde então Maria Mutema nunca voltou para rezar ou confessar. Enterrara dois homens que cruzaram seu caminho.
Mas vai que um dia… Chegaram no arraial dois missionários com jeitão estrangeiro, fortes, ativos, desses que agitam, movimentam, sacodem, exigem reza forte. Quando um deles pregava no púlpito, assim no mais, Maria Mutema principiou a entrar na igreja. Ninguém entendeu. O padre entreparou e a expulsou aos berros, convidando-a para um encontro de confissão na porta do cemitério. E ela, magra, fina, toda de preto, estacou e gemeu, pedindo perdão em público e confessou que tinha matado o marido, sem motivo, derramando chumbo derretido pelo buraquinho do ouvido, através de um funil, enquanto ele dormia. E matou o Padre Ponte de desgosto, repetindo e repetindo que tinha matado o marido porque estava apaixonada pelo padre e “queria ser concubina amásia” (p. 242). Tudo mentira, provocação, caso pensado.
Mandaram desenterrar os ossos do marido e “se conta que a gente sacolejava a caveira, e a bola de chumbo sacudia lá dentro, até tinia” (Idem). A mulher foi presa provisória na casa da escola esperando justiça.
Ela então se mostrou arrependida. Clamava de joelhos seu remorso, pedia perdão e castigo. Não comia, não sossegava, suplicava “que todos viessem cuspir na sua cara, dar bordoadas, que ela tudo isso merecia” (Idem). O povo foi se apiedando de tanta humilhação e sofrimento. “Alguns até diziam que Maria Mutema estava ficando santa” (p. 243).
O sertão é um mundo de mistérios.
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