Lembra quando éramos adolescentes, íamos ao cinema em grupos de amigos e saíamos das salas de exibição extasiados, com a sensação de termos vistos um filme incrível, espetacular? “Filmão” – era o que repetíamos. Pois bem, ninguém soube distinguir tanto o cinema como arte para as massas como o diretor italiano Sergio Leone. Começou muito cedo. Aos dezoito anos, já era assistente do mestre Vittorio de Sica no emblemático Ladrões de Bicicleta, um dos filmes fundamentais da estética neo-realista italiana.

Leone foi o engendrador definitivo do que poderíamos chamar de “filmões” do século XX – em cenas antológicas e poéticas, podemos perceber: close ups quase irreais de tão próximos aos olhos dos personagens; o uso hábil da montagem como efeito dramático; a perfeita harmonia entre música e imagens (com a onipresente colaboração do maestro Ennio Morricone, outro gênio que sabia atingir em cheio o coração do grande público). E sangue, muito sangue. Em suas mãos, o faroeste foi reinventado, quando já parecia estar agonizando. Seu estilo, único. Camp. Kitsch. Exagerado. Surreal.

Esqueça John Ford ou Howard Hawks, norte-americanos e mestres do faroeste tradicional. Estamos no terreno dos western spaghetti. A atmosfera e os elementos, estilizados ao extremo, são outros. Leone, criador desse novo segmento do western, sabia, como poucos, ler o que o público queria, eis talvez a sua maior virtude: entender que cinema lida basicamente com temas ligados à cultura popular – lutas, duelos, vingança, o senso de maniqueísmo (bem x mal). Assim como outro gênio, Hitchcock (este talvez o maior de todos), Sergio soube usar a escala popular para inserir/ocultar em seus enredos temas mais sofisticados, que estariam, portanto, nas entrelinhas. Sua trilogia sobre o “homem sem nome”, o misterioso pistoleiro que alçou Clint Eastwood à condição de astro, começa com Por um punhado de dólares (remake estilizado de Yojimbo, o guarda-costas, de Kurosawa) e termina com Três homens em conflito (1966), ou O bom, o mau e o feio, para os mais puristas que rejeitam algumas adaptações ridículas de títulos feitas no Brasil.

O filme sobre um trio de arruaceiros tem um quê de ritmo de desenho animado. Passado na época da Guerra Civil Americana, o exagero, muitas vezes, parece ser sua assinatura ou sua marca maior: ruas parecem ter quilômetros de largura; pequenas construções vistas de fora parecem centros de convenções por dentro; os bandidos são enormes e maus ao extremo; os ferimentos exibidos nos tiroteios são absurdamente espalhafatosos. Cinema para as massas, xeque mate! A cena final então… Será que preciso me referir a ela?! Antológica, uma das maiores da sétima arte: o bom, o mau e o feio (Clint, Lee Van Cleef e Eli Wallach) se encontram para um duelo final em um cemitério – uma das mais imitadas e parodiadas na história do cinema. A coreografia de olhares segue o ritmo da música fabulosa de Morricone. Talvez a maior cena já escrita sobre a cobiça humana.

Corta para Era uma vez no Oeste (1968). A coreografia continua, a própria coreografia da morte. Aliás, a “dança da morte”, como alguns críticos da época chegaram a mencionar em suas resenhas. Ainda mais surreal e insano, o far west transforma-se em ópera. Os movimentos das câmeras são puro balé. O talento pictórico de Leone revela-se em magníficas cenas panorâmicas nesta que é provavelmente sua obra-prima definitiva. A música inesquecível e marcante de Morricone continua mesclando guitarras elétricas à orquestração tradicional. Grande arte para as massas! Épico supremo!

Henry Fonda nos mete medo de um modo bem visceral, com seu bandidão assassino Frank, contrariando o seu estereótipo de bom mocismo marcado por interpretações em outras películas. A estonteante Claudia Cardinale e o talentoso Jason Robards (cujo rosto nos lembra, em alguns momentos, o grande ícone cultural brasileiro W.J. Solha) estão corretamente inseridos na trama, ao passo que Charles Bronson (dono de uma canastrice incrível em outros filmes de outros diretores) de fato nos impressiona, assumindo o papel do “homem sem nome”, ou Harmônica para os mais íntimos (ele passa boa parte de suas cenas tocando uma gaita, persistindo em seu lamento, em busca de sua vingança/redenção). Se em Três homens em conflito o ponto alto do filme é a cena final, aqui, em Era uma vez no Oeste, a abertura é que é fenomenal: Woody Strode, Al Mulock e Jack Elam esperam por um trem que parece que nunca vai chegar, mas chega. E traz Charles Bronson para o tiroteio que dá início ao filme. Cinema à perfeição: em um suspense que se prolonga no tempo (uma das grandes marcas de Leone), os atores contracenam até mesmo com uma mosca e uma goteira.

Leone ainda nos brindou com Era uma vez na América, longo filme de gangsters irregular, mas com grandes cenas também, com atuações marcantes de Robert De Niro e James Woods. Morreu cedo, em 1989, aos sessenta anos de idade. Foi um dos grandes diretores de sua geração e da história. Aliás, seu senso de cinema é realmente algo descomunal. Influenciou muita gente, dos irmãos Scott (Ridley e Tony), passando pelo próprio Clint, indo desaguar em John Woo, Besson, Tarantino, Rodriguez & Cia, diretores que com ele (e outro mestre – Sam Peckinpah, “o poeta da violência”) aprenderam a lição de usar a violência para fins estéticos. Leone foi e ainda é pop, moderno, muito antes que seus pares o fossem. Cinema em estado bruto. Inigualável.  

Thiago Andrade Macedo: escritor infiltrado no serviço público federal, advogado não militante, autor do romance policial, psicológico e filosófico O Silêncio das Sombras, também atuou como articulista do jornal A União; filho de pernambucanos nascido nas Minas Gerais, atualmente é um ex-nômade radicado em João Pessoa, Paraíba.

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