Nas andanças pelo romance “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, deparamos com o ex-jagunço Riobaldo Tatarana, narrador e personagem central, relatando que um dia percebeu que Zé Bebelo estava com medo. É difícil de imaginar. Então o grande chefe José Rebelo Adro Antunes, sobrechamado Zé Bebelo, valente condutor de um grupo temido e respeitado poderia lá sentir medo? Mas, conclui ele, conformado, “chega um dia se tem.” Esse medo, porém, não vinha de homem, por perigoso que fosse, de combates ou tiroteios, de traições e tocaias; era de outra natureza. “Medo dele era da bexiga, do risco de doença e morte: achando que o povo do Sucruiú podiam ter trazido o mau ar, e que mesmo o Sucruiú ainda demeava vizinho justo demais.” O primeiro impulso de Riobaldo foi rir, tão ridículo lhe parecia aquele medo do chefe, mas não podia e nem devia demonstrar. “Tanto ri – confessou ele. – Mas ri por de dentro, e procedi sério feito um pau do campo… Alguém estiver com medo, por exemplo, próximo, o medo dele quer logo passar para o senhor; mas, se o senhor firme aguentar de não temer, de jeito nenhum, a coragem sua redobra e tresdobra, que até espanta. Pois Zé Bebelo, que sempre se supria certo de si, tendo tudo por seguro, agora bambeava. Eu comecei a tremeluzir em mim” (p. 416). O medo é contagioso.

Por via das dúvidas, abalaram dali. Seguro morreu de velho. “Pelo que umas cinco léguas andamos – recordou ele. – De medo, meio, conforme decerto… Merecer logo ao menos uma semana de quieto, é que era justo; pois nenhum não estava mais na sua saúde… “ (Idem). Andaram e andaram. “E por fim viemos esbarrar em lugar de algum cômodo, mas feio, como feio não se vê. – Tudo é gerais, – eu pensei por consolo. Um homem, que com a machadinha na mão e sua cabaça a tiracol tratava de desmelar cortiço num pau do mato, esse indicou tudo necessário e deu a menção de onde é que estávamos. Na Coruja, um retiro taperado” (p. 417).

Mas a doença deles, por sorte, não era maligna. “Refiro ao senhor que, da bexiga-brava, não. Mas de outras enfermidades. Febres” (p. 418). Riobaldo não dormia, comia pouco, sentia perder a natureza de homem e, para completar, aquele lugar lúgubre provocou uma depressão. O jagunço pensou coisas más, pensamentos negativos e graves (suicídio?). Os cuidados de Diadorim e os chás de Raymundo Lé o curaram, a vida voltou a ficar certa e boa.

Pior sorte tiveram o Gregoriano e o Felisberto. O primeiro, picado por uma jararaca, no meio de um capim ralo, morreu. Já o Felisberto, coitado, levou um tiro de garrucha na cabeça e a bala de cobre “estava encravada na vida de seus encaixes e carnes, onde ferramenta de doutor nenhum  não alcançava de escarafunchar” (p. 421). Desde então, de tempos em tempos, “de repente, sem razão entendível nenhuma, a cara desse Felisberto se esverdeava, até os dentes, de azinhavres… Ao que os olhos inchavam, tudo ficando em verde, uma mancha só… O nariz entupia, inchado. Ele tossia. E horror de se ver, o metal do esverdeio… Dizia naquelas horas que estava sem visiva, nada não enxergava” (Idem). Depois, aos poucos, ia azulando; aquilo era para sarar.

E ali no Coruja, lugar feio e triste de doer, padeciam seus males. Zé Bebelo não deixava de palavrear, procurando levantar o moral do bando. Alguém sugeriu invadir um lugarejo qualquer só para animar, mas Riobaldo não concordou. Passam os dias, os ânimos se refazem e a luta continua. Carecia de combater o Hermógenes, o mal maior, o inimigo de verdade. Hermógenes Saranhó Rodrigues Felipes, flagelo do sertão.     

Enéas Athanázio: escritor e jurista catarinense, uma das maiores autoridades do país sobre cultura indígena, colunista da revista Blumenau em Cadernos e do jornal Página 3, é autor de mais de cinquenta livros, entre eles Meu chão, O perto e o longe e O pó da estrada.

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