Aqui, em meu cantinho de trabalho, eu passo a maior parte do dia. A escrivaninha é em forma de “L”, estando o computador sobre a parte menor e mais baixa. Em prolongamento desta, em sentido contrário e ficando à minha frente, há outra mesa de escritório, que serve para meu neto Tony fazer seus temas e eu deixar em exibição alguns troféus recebidos e fotos em moldura. No centro, emoldurado, um texto escrito à mão.
Meu filho Diego mora em Campos Novos, Santa Catarina. Sempre que pode, aparece-me por aqui e é uma festa recebê-lo. Bisbilhota-me tudo, inspeciona o meu cantinho de trabalho e, um dia, parou-se diante da mesa fronteira, em vistoria às fotos e troféus. Tudo conhecido de tempos. Deteve-se mais diante do manuscrito emoldurado, que este lhe era novo. Ficou a ler, com atenção e vagar. Depois de um bocado de tempo, sem voltar-se, falou em tom arrastado e meio amuado:
─ Ah, pai, assim não vale.
─ Hã? ─ fiz eu e virei-me do computador.
O Diego é mais alto que eu e bem mais corpulento. Forte como ele só, um tronco. Joga futebol de salão e é goleiro: um goleiro goleador. Tem um chute que é uma paulada. Se fosse jogador de futebol de campo teria que ser centroavante ou zagueiro. Como centroavante, seria um tanque abrindo caminho; como zagueiro, uma barreira intransponível. Mas quis ser goleiro e é meu filho e herdou-me o gosto pelo futebol.
─ Não vale, ela sempre ganha de mim ─ continuou ele.
─ Ganha o quê?
─ Isso ─ e apontou para o manuscrito emoldurado.
Era de minha filha Inês, mana do Diego, e a Inês é o oposto do Diego. Baixinha, é frágil. Funcionária pública, substituiu-me em cargos. Tem inteligência privilegiada, sensibilidade extrema, escreve bem e é leitora incansável. Se não fosse a necessidade do emprego, por certo estaria em alguma atividade de pura espiritualidade. Mas precisa sujeitar-se à matéria e sofre conformada e de mim ficou com o gosto pela vida interior.
─ Isso, o que tem? ─ eu perguntei.
─ Isso que a Inês escreveu.
─ Sim, o que tem?
─ Ela disse o que eu queria dizer.
Eu fitei-o, quase surpreso, e fiquei-me em consideração. Então ele queria dizer o que a Inês tinha dito? A Inês escreveu o que ele teria querido escrever? O que, em verdade, queria dizer uma coisa bem simples: os dois queriam dizer a mesma coisa.
Não sei bem por que, nem como, mas foi aí, nesse momento, que o pensamento me escapuliu para muito longe. Voltei-me para a prateleira de livros, à direita, e divisei, lá na distante Rússia, o livro de Turgueniev, Pais e Filhos. Nele, o grande russo nos traça um painel forte desse sempre tão falado conflito de gerações: pais versus filhos, filhos versus pais. Como caminham pais e filhos, filhos e pais, assim caminha a sociedade: pais que se aferram ao status quo, filhos que tudo querem mudar; pais que só admitem velhas tradições, filhos que só aceitam ideias de revolução.
─ É sempre assim ─ continuou o Diego, diante do meu silêncio.
Levantei-me, passei o braço por suas costas. Ele me enlaçou pelos ombros ─ eu já disse, ele é mais alto que eu. Falei:
─ Que é isso, filhão? Toda a bola que você defende, todo o gol que você faz, para mim é como se fosse esse texto da Inês.
─ Mas não é a mesma coisa.
─ Claro que não é. E daí? O que vale é o gesto.
Senti que ele me atraía; apertei-o contra mim. Afinal, ele era uma espécie de corpo meu e meu esporte em grau ampliado ─ a Inês seria uma espécie de alma e sensibilidade minhas, em nível mais elevado.
Pai e filhos éramos.
Somos. Em sequência e continuidade, sem conflito nem choques. Tanto que até os netos aqui permanecem, unidos, e o caçulinha Tony é testemunha: faz seus temas na mesa ao lado da minha. O Diego fez sua manifestação e a Inês a fixou para sempre, em manuscrito emoldurado, que ali está:
Pai,
Eu lembro de um cartão que te dei quando eu era criança e que dizia mais ou menos assim: “Eu seguirei sempre teus passos”. Hoje, quando eu já estou com 30 anos, vejo que essa frase é verdade, pois me vejo passando por caminhos por onde tu já passaste e, realmente, seguindo teus passos. Às vezes faço coisas que tu fazes e, até mesmo, repito teus gestos. Procuro sempre seguir o caminho que tu me indicas e nem sempre acerto. Mas lá estás tu para me ajudar a não me perder.
Por tudo isso, hoje escrevo essas linhas para que saibas do orgulho que tenho de ser tua filha e para te agradecer todas as vezes em que me escutas e me mostras o caminho.
Feliz Dia dos Pais!
Da tua filha
Inês.
Nelson Hoffmann: escritor, professor, advogado e filósofo gaúcho, autor de vasta obra literária, com destaque para a série de livros protagonizada pelo detetive policial João Roque Landblut, também é profundo estudioso da história do Rio Grande do Sul, da cultura indígena e da região das Missões.
E-mail: nelson.hoffmann@yahoo.com.br