Não há como não estabelecer uma relação entre “Bolero” e “Bolerus”. O primeiro é um gênero musical nascido na Europa e depois trazido para a América, em especial para Cuba, onde se misturou com ritmos africanos. Já o segundo é um besouro. Isso mesmo. Um inseto da ordem dos coleópteros. Qual seria então a provocação do autor com tal título? Fazer o nosso pensamento dançar? Colocar um inseto zunindo na nossa cabeça para remexer os neurônios, rearranjando nossas viciadas sinapses, tão acostumadas ao óbvio? Façamos uma síntese: um besouro atrevido, às vezes irritante e desafiador como o grilo falante de Disney ou a mosca da sopa de Raul, que nos tira da nossa cômoda posição e nos faz encontrar novas formas de fazer o pensamento dançar. Talvez seja isso. E não adianta dedetizar! Também é inútil dormir, que a dor não passa.

Mas vamos ao livro. Em primeiro lugar, julgo necessário estabelecer aqui uma definição acerca do estilo de cada escritor. Trata-se do modo com que as palavras são escolhidas e dispostas na prosa ou na poesia. É como se o autor tocasse uma música e as palavras dançassem de acordo com o ritmo dos sons produzidos por ele. Às vezes uma dança lenta, às vezes acelerada, grave ou aguda, harmoniosa… E, em alguns momentos, ele pode até emitir acordes dissonantes pelos cinco mil alto-falantes das páginas da sua obra. Senhoras e senhores, ele também pode pôr os olhos grandes sobre o mundo para cantá-lo do seu próprio modo aos leitores!

Na obra “Bolerus”, primeira reunião de poemas de Vanderley Sampaio (foto abaixo), a trilha sonora é fortemente marcada pelo concretismo. Na maioria dos poemas, com destaque para “Pingos nos is” e “Um espinho”, isso fica muito claro e pode ser facilmente comprovado na própria diagramação dos versos. Sampaio se preocupa com a disposição espacial das palavras em alinhamentos geométricos, buscando com extrema competência uma forma para veicular a expressão poética, concentrando suas preocupações na materialidade da palavra, nos seus aspectos sonoro e visual, tal qual fizeram Haroldo de Campos, Augusto de Campos e Décio Pignatari, no final dos anos 50, mandando às favas as métricas e rimas tradicionais. Afinal, nem sempre a adequação tem que ser perfeita ao modo de Bilac. Como já disse Caetano, nem tudo é métrica e rima, às vezes é dor! A dor de romper, como faz Sampaio.

Por isso, “Bolerus” tem um leve cheiro de Tropicalismo na medida em que flexibiliza versos, aproveita espaços em branco como parte da significação, transforma as palavras em objetos, explorando a sonoridade e a visualidade. Mas também é deliciosamente contaminado por um sutil sabor de poesia-práxis ao se preocupar com os aspectos semânticos das palavras, fazendo uso de neologismos, decompondo termos, abrindo a possibilidade de múltiplas leituras, levando em conta a capacidade própria de interpretação de cada leitor.

A predominância de um estilo em que conteúdo e forma se enamoram e brigam ao mesmo tempo em cada um dos versos, nos leva a compreender o porquê da escolha de tal canto. Possivelmente, as influências dos estudos semióticos do autor, formado em jornalismo, são sentidas aí. As leituras de Peirce, Pignatari, Umberto Eco e outros grandes pensadores, durante seu período na Unesp (Universidade Estadual Paulista), onde ele concluiu a sua primeira graduação, dão o tom e a partitura para que o poeta torne seus instrumentos afinadíssimos, o papel e a caneta, notadamente em noites solitárias e inquietas, como ele mesmo revela em alguns textos – “Escuridão”, “Sozinho”, “A noite que traiu as águas” e “Carta à Madrugada”, por exemplo – e embale as palavras com tal maestria.

No poema “Semântica”, porém, Sampaio dá mostras de que nem só de “gestalt” vivem seus versos ao nos mandar engolir, tirar, jogar ou privar a palavra se não for semântica, ou seja, caso ela não esteja carregada de significado. A psicologia das formas, também apreendida pelo autor em seus estudos unespianos, sugere ao leitor não se ater apenas ao particular da palavra-objeto, mas também ao todo, à imagem produzida, que muitas vezes redunda em figuras geométricas reveladoras. Por outro lado, cada palavra particular tem o seu valor e não pode ser completamente desprezada.

Prova disso está na página seguinte, em “Termo”, poema em que ele demonstra que as palavras não devem ser salpicadas ao modo de um saleiro, sem razão, sem destino ou dose certa. Cada termo precisa ser próprio. “E se lhe parecer impróprio, talvez não tenha sido minucioso o suficiente”. Ainda bem que, segundo o poeta, generoso com todos os que se arriscam a cantar sem muito critério, “a insuficiência do termo nem sempre prejudica a noite”.

Com relação às indagações acerca da minha análise, como amigo e admirador do autor, eu posso garantir que tive o cuidado de tecê-la com o necessário distanciamento. Meus estudos de sociologia neste momento evocam Bordieu: “os circuitos de consagração social serão tanto mais eficazes quanto maior a distância social do objeto consagrado”. Consagro o trabalho de Sampaio pela qualidade, pelo prazer da leitura, pelo compromisso com a seriedade e porque conheço sua trajetória poética, sempre constante e paralela ao oficio de jornalista, que ele igualmente desempenhou com brilhantismo. A poesia acompanha o autor desde a mais tenra idade e tenho certeza de que esse livro é apenas o primeiro de muitos que ainda virão, afinal, eu sei de uma colônia de bolerus que ainda não voaram para as primeiras páginas. Por enquanto, são apenas ninfas em crescimento… Ou, quem sabe, já estão zunindo na cabeça de um certo poeta.

Marcos Fidêncio: jornalista formado pela Unesp, onde também cursou Ciências Sociais, especializando-se em Marketing na Univem; sua trajetória profissional se iniciou na Rádio Centro-Oeste AM e 102 FM de Garça/SP; passou depois por veículos impressos, como o Jornal Folha de Garça e o Jornal Diário de Marília, assim como pelas rádios Dirceu de Marília, Diário FM, Itaipu FM e Clube AM de Marília.

E-mail: marcosfidencio@gmail.com