Quarta-feira à tarde foi pegar na farmácia especializada o suplemento de pílulas homeopáticas. Tentava livrar-se de uma nova crise de alergia respiratória. Não estão prontas, houve uma falha no Sistema. Pediu à balconista que explicasse melhor. O que o Sistema tem a ver com manipulação de componentes fitoterápicos? Despediu-se sabendo um pouco sobre trâmite de receitas, solicitação e despacho de drogas, e o papel do Sistema nesse processo.

Abre parêntese. Nasceu com os pulmões avariados. O médico diagnosticou bronquite, e tudo o que indicaram para sua mãe, como sendo uma relíquia para lhe curar da doença, ela deu para ele. Bebeu tonéis de lambedores e engoliu toneladas de ervas maceradas. No entanto, deve àquela tosse chata seu primeiro contato com a literatura. Proibido de brincar no recreio, ficava na companhia de Esopo e La Fontaine, recluso na pequena biblioteca do grupo escolar.

A adolescência e uns comprimidos de Revenil Dospan aliviaram o drama da sua mãe. Mas aí, para desespero dela, aculturou-se e começou a inalar fumaça de tabaco. Era quase uma gripe para cada maço de cigarros. Cerca de dez anos atrás, o pneumologista detectou um princípio de enfisema. A doença está no jardim da infância. A evolução do histórico escolar depende apenas de você. Não esperou pela graduação, e cortou o mal pela raiz. Fecha parêntese.

Nos anos setenta, na capital de dois lados apenas, quando saía da primeira asa para o painel central do tríptico de Hieronymus Bosch, O Jardim das Delícias, o Sistema tomou o lugar de tudo o que até então os atemorizava, desde a infância. Se alguém perdia o emprego ou pedia esmola, a culpa era, invariavelmente, do Sistema. Todas as angústias, medos e fracassos eram a Ele creditados. O Sistema era a desculpa universal, de todos, para todos os limites e maldades.

O Sistema – multiforme, onisciente, onipresente, onipotente – atacava em várias frentes. Seu tentáculo mais poderoso, depois da família, da Coca-Cola e dos discos de Roberto Carlos, era a televisão. Telóptico era o estado mais radical de alienação. Ninguém mais iludido do que o cara que passava horas sendo assistido pela tevê. Pouco a pouco, o Sistema foi tomando forma humana – pelo menos para a sua geração -; calçava coturnos e trazia estrelas nos ombros.

Sua mãe deve ter perdido muitas noites de sono depois das longas conversas que mantinham, à época, quando ele tentava lhe explicar que a magreza, os cabelos compridos e assanhados, assim como as roupas amarfanhadas, fora do padrão, eram uma reação ao Sistema. Não vou me adaptar, mãe. Fugiu para o Reino Vegetal. Ali Ele não o encontraria, para dobrá-lo, amalgamado que estava às espécies mais exóticas. A macrobiótica era seu esconderijo e trincheira.

Hoje, exposto ao sol na clareira urbana, olha em torno e, fazendo um balanço do que faz, tem e é, desconfia que o Sistema venceu. Não há mais cabelos e as roupas, como todas as roupas, são vitrines. As palavras sem novidades flutuam e são absorvidas pelo inchado balão, que qualquer dia destes a ferocidade dos verbos irá furar. Ele agora achincalha. Se o dinheiro não cai na conta ou se o remédio urgente atrasa, as explicações soam uníssonas: o Sistema caiu. Caiu?

William Costa: jornalista de carreira e escritor paraibano, editor do suplemento cultural Correio das Artes, cronista do jornal A União, tem vasta experiência em veículos de imprensa e é autor do livro de crônicas e contos Para tocar tuas mãos - Chronesis.

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