Nas várias vezes em que me foi perguntado – e a muitos como eu – quais os melhores filmes que já vira, sempre me senti – ao insistir num deles – meio Bolsonaro se achando o único soldado com passo certo no seu batalhão, na enorme parada de 7 de setembro. Mas eu o revi agora, nessa quarentena e, embora longe da magnificência da tela grande de um bom cinema, continuo a repetir o nome do documentário de Godfrey Reggio, “KOYAANISQATI – Uma vida fora de controle (ou de equilíbrio)”, com os 87 minutos de imagens deslumbrantes de Ron Fricke, música especialmente significativa de Philip Glass, uma das melhores realizações que já vi na área.

É, o orçamento de 2 milhões e meio de dólares, receita de 800 milhões a menos, pesa contra mim, mas mantenho a escolha.
Num ponto, ele tem um antecessor notável: O TRIUNFO DA VERDADE, de Leni Riefenstahl, de 1934, fabuloso documentário que, como KOYAANISQATI, não tem narração. O uso que a cineasta alemã fez de dezenas de câmeras distribuídas por Nuremberg, no encontro do partido Nazista daquele ano, foi coisa que nem a televisão conseguiu emular décadas depois.

O TRIUNFO DA VONTADE impõe-se pela genialidade técnica, apesar – e bote apesar disso – do tema . E KOYAANISQATI? Godfrey Reggio diz que sua intenção foi “a de criar uma experiência, e que fica com o espectador decidir o que o filme significa”. A música de Philip Glass contribui pra que se veja a montagem resultante dos sete anos de filmagens de Fricke pelos Estados Unidos, como um poderoso poema sinfônico. O longo travelling sobre o gigantesco e desértico Monument Valley, com notável aproveitamento das passagens de nuvens e de suas sombras pelos canyons, põe o que vimos dessa paisagem no clássico Rastros de Ódio, de John Ford como uma pequena amostra do que é a opulência e gigantismo deste deslumbrante planeta.

Quando o sobrevoo tem como tema única e exclusivamente nuvens, elas – aceleradas pelo sistema time-lapse – se revelam imensos oceanos com vagalhões se jogando contra picos de montanhas como se fossem arrecifes, elas de repente niágaras nas encostas do outro lado. O respeito à Terra é absoluto. E, nela, o frenético fenômeno humano com registro de trânsitos inconcebíveis a não ser pelo uso do mesmo sistema de aceleração – avenidas enormes pulsando como veias e artérias, à noite, graças aos milhares de faróis e lanternas traseiras dos carros. Uma enorme escada rolante nos mostra como nos tornamos excessivos em tudo, principalmente quando se passa a ver, com igual velocidade, a produção de automóveis, engarrafamento de bebidas, seleção de ovos e de pintos de um dia, além de computadores e televisores, impensáveis estacionamentos definitivos de filas ilimitadas de tanques-de-guerra obsoletos, de aviões superados e não mais inutilizados, a implosão de centenas de edifícios modernos abandonados pela migração de riquezas.

KOYAANISQATSI parece que foi feito após termos vivido – e escapado – deste momento totalizante do coronavírus. É impressionante.

W. J. Solha: romancista, poeta e ensaísta paulista radicado na Paraíba, é também dramaturgo, ator, artista plástico e publicitário, com vários livros publicados e premiados, transitando em várias frentes de nossa cultura; um artista "multimídia" por excelência.

E-mail: waldemarsolha@gmail.com