Leibniz *, desde o início de sua produção intelectual, aspira à criação de uma ciência universal, que compile em si várias disciplinas, visando a uma organização cultural e política global. Teoriza, portanto, com bastante lucidez e pertinência, a diferença estrutural entre a pesquisa científica e a de cunho filosófico-metafísico. Com a revolução científica capitaneada por nomes como Galileu, Copérnico, Kepler, Bacon e, sobretudo, Descartes, o pensamento ocidental sofre uma reviravolta radical: extensão e movimento são então considerados causas suficientes para a explicação da realidade ontológica do mundo e de seus fenômenos.

O projeto filosófico de Leibniz, entretanto, é uma tentativa de mediação entre a philosophia perennis (expressão que abarca a filosofia antiga, a medieval, a escolástica) e as descobertas dos chamados philosophi novi, ou seja, dos modernos filósofos e cientistas, cada um com seu âmbito de validade. Seu ecletismo busca estabelecer distinções e aproximações entre o plano da explicação filosófica, mais geral, e o plano da explicação científica, mais particular, recuperando e redimensionando o sentido de “finalismo” e das chamadas “formas substanciais”, cujo significado estava desacreditado pelo boom científico da época.

Para além da extensão e do movimento, há algo de natureza não física, mas metafísica, no sistema leibniziano, qual seja: a substância, que seria uma força originária, indicada como entreléquia (de origem aristotélica, com as devidas assimilações dos conceitos de “ato” e “potência” do estagirita) e, mormente, como mônada (do grego monás, significando unidade ou “aquilo que é uno”, palavra de origem pitagórica que foi retomada pelos neoplatônicos e depois por Giordano Bruno), demonstrando também, em certa medida, influência dos pré-socráticos Leucipo e Demócrito, muito embora, no universo leibniziano, os átomos, mutatis mutandis, não seriam como átomos materiais ou físicos, mas átomos formais, não extensos. Apesar de contestar Spinoza (que tinha uma visão monista da realidade) com sua monadologia, Leibiniz compartilha com ele a ideia de que as substâncias não podem interagir, o que se nota quando se expressa dizendo que as mônadas são fechadas, “sem portas nem janelas”, ou seja, cada mônada seria um microcosmo, porém representaria todas as outras mônadas, isto é, o universo inteiro, cada uma a seu modo, o que evidencia seu princípio de identidade dos discerníveis, segundo o qual não existem duas substâncias exatamente idênticas, absolutamente indiferenciadas, visto que, se assim fosse, elas seriam uma única e idêntica substância. Espaço e tempo, por conseguinte, não são entidades ou propriedades ontológicas das coisas, assumindo tão-somente a natureza de fenômenos, isto é, o modo como a realidade aparece a nós, refutando assim o mecanicismo – tão caro a pensadores e cientistas como Descartes[1] e Newton -, algo que a própria história da ciência provou estar errado, haja vista o desenvolvimento, já no século XX, da teoria da relatividade e da física quântica. Tais entendimentos, todavia, provocaram muita controvérsia em seu tempo. A crítica que Leibiniz fez à ciência de seu tempo, em seu mundo fechado, reverbera até nossos dias[2].

No campo da epistemologia, Leibniz demonstra que a saída mais viável para o conhecimento é a intersecção dos saberes, a inclusão em vez da exclusão, a tolerância no lugar da visão autocrática e, no mais das vezes, cega.

Há um curioso conceito da astronomia, surgido na Grécia Antiga, que pode perfeitamente ser aplicado ao pensamento de Leibniz: a paralaxe. Usada para medir a distância entre as estrelas, com o movimento da Terra em sua órbita como referencial, a paralaxe pode ser definida, em uma acepção mais vulgar, como um termo que designa uma ilusão de ótica, demonstrando as diferenças que um mesmo objeto pode apresentar, a depender da perspectiva de alguém o observa. Esse conceito serve também para nos alertar de que um ponto de vista é tão-somente a vista de um ponto, valendo para nossas concepções filosóficas, políticas, religiosas, pessoais, afetivas etc. Muitas vezes, aquilo que julgamos observar no outro é apenas uma das muitas perspectivas possíveis, isto é, nossa “noção de verdade” é apenas a “nossa verdade”, ao passo que a “noção de verdade” do outro é somente a “verdade do outro”. Fundamental é ter essa visão em conta, para evitar interpretações da realidade baseadas em uma espécie de solipsismo, ressaltando-se, outrossim, que tal forma de enxergar o mundo e as coisas nada tem a ver com um relativismo de pensamento: é apenas uma maneira de tornar o convívio social e o desenvolvimento do conhecimento humano mais tolerantes, como bem queria Leibniz – ideia que posteriormente também foi defendida, com bastante veemência, por Locke, indubitavelmente por Hume e, de alguma forma, por Kant, por exemplo, a julgar por seu sistema baseado em uma metafísica da liberdade, da moral e do direito. Há muitas formas de enxergar o mundo, algumas estão permeadas por entendimentos praticamente imutáveis, certezas quase dogmáticas, por demais ortodoxas. Essa “ilusão de ótica” é extremamente danosa para a epistemologia e o conhecimento humanos.

 

[1] Sobre a oposição de Leibniz ao cartesianismo, é relevante a colocação do Professor Dr. Ulysses Pinheiro em pertinente artigo: “Não é surpreendente, pois, que ele tenha sempre rejeitado a dúvida solipsista de Descartes e afirmado, em seu lugar, a perfeita identidade entre o interno e o externo.” Cf. PINHEIRO, Ulysses. A dinâmica do passado e do futuro. Revista Estudos Kantianos, Marília, v. 4, n. 2, Jul./Dez., 2016, p. 199.

[2] Aqui, urge destacar trecho de artigo do Professor Dr. Cristiano Bonneau: “A crise que Leibniz vislumbrou com tanta propriedade na comunidade científica não fora superada ainda em nossos dias. Somos acometidos de dificuldades imensas em nos relacionar com as outras ciências; até mesmo os discursos proferidos dentro de nossos estritos campos de saber correm o risco de permanecerem isolados uns dos outros.” Cf. BONNEAU, Cristiano. A questão da invenção – uma reflexão sobre o conhecimento em Leibniz– Cadernos Espinosanos, São Paulo, n.34, jan.-jun., 2016, p. 91.

* Esta é a primeira parte de um artigo apresentado por este subscritor ao Mestrado de Filosofia da Universidade Federal da Paraíba, pelo Programa de Pós-Graduação da UFPB.

Thiago Andrade Macedo: escritor infiltrado no serviço público federal, advogado não militante, autor do romance policial, psicológico e filosófico O Silêncio das Sombras, também atuou como articulista do jornal A União; filho de pernambucanos nascido nas Minas Gerais, atualmente é um ex-nômade radicado em João Pessoa, Paraíba.

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