Entre tantos temas soberbos, extraídos de discos visionários como Miles Ahead, Sketches of Spain, Kind of Blue, E.S.P. ou Filles de Kilimanjaro, há um que, a meu ver, sintetiza a sua sofisticação: a versão de Around Midnight (composta por B. Haninghen, C. Williams e um outro gênio, só que do piano – Thelonious Monk, em duas versões abaixo – a de estúdio e outra ao vivo), na qual a banda é composta apenas por um tal John Coltrane no saxofone tenor, William “Red” Garland no piano, Paul Chambers no baixo e Philly Joe Jones na bateria (não confundi-lo com outro monstro das baquetas – Jo Jones). Quando ouço músicas como esta, fico imaginando por que certos sons primários produzidos por seres humanos, no terreno da canção popular, ainda são chamados de música…

Em 1972, Davis sofre um acidente de carro, ocasião em que surgem outras complicações em sua vida pessoal decorrentes de antigos problemas com drogas e álcool, razão pela qual sai de cena até 1980 (seu maior período de hibernação). Volta no ano seguinte, com bastante estardalhaço da gravadora Columbia, com o álbum The Man with Horn.

Miles pertenceu a uma linhagem de trompetistas tradicionais e fenomenais do jazz, que começa com Buddy Bolden, passando por Joe “King” Oliver, Louis Armstrong e o incrível e sincopado Dizzy Gillespie. Ao contrário desses músicos, nunca foi considerado um virtuose de alto nível de habilidade técnica. Miles, no entanto, não se importava com isso: ele almejava moldar estilos inteiros, queria construir a “nova música”. E, de fato, conseguiu tal façanha. Dessa forma, ser influente ou obter distinção em seu instrumento era só um mero detalhe. 

Certa feita, assistindo a um show da turnê Banco do Brasil de música instrumental em João Pessoa, no teatro de arena do Espaço Cultural José Lins do Rego, ouvi o bruxo brasileiro Hermeto Pascoal, entre uma música e outra, na hora de interagir com o público, dizer, mais ou menos com estas palavras: “já viajei o mundo inteiro tocando minha música e posso dizer que toco qualquer instrumento que apareça em minha frente, tiro música de tudo que vocês imaginarem, até de uma chaleira ou pedaços de pau, se assim quiserem, mas, no dia em que um camarada chamado Miles Davis falou que eu tinha sido um dos maiores músicos que tocaram com ele, perdi meu chão, a partir dali eu já sabia que nada mais importava, eu podia morrer feliz.”

Para tentar concluir de forma memorável este artigo (não é fácil falar sobre a música poderosa de Miles), o resenhista ficou procurando o dia em que Miles morreu… Ele morreu?! Assim… de verdade?! No caso dele, a morte física foi apenas um mero detalhe.

Thiago Andrade Macedo: escritor infiltrado no serviço público federal, advogado não militante, autor do romance policial, psicológico e filosófico O Silêncio das Sombras, também atuou como articulista do jornal A União; filho de pernambucanos nascido nas Minas Gerais, atualmente é um ex-nômade radicado em João Pessoa, Paraíba.

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