A humanidade não é tão digna quanto deveria ser. Que bom se as pessoas fossem como as flores. Em cada botão ela imprime os nódulos que a cercam. Em cada nó, há uma fala esmiuçando-se para um leito de rio onde nada mais cabe, exceto o não-leito-do-rio; sem antídoto porque fatal. As feridas forram a alma e afogam o sentimento de felicidade que um dia a perpassou e ela sequer soube da sua sublime inquietação. Não se vê morrendo. Mas sente-se condenada a não morrer. Prefere os raros pingos d’água que a hidratam no que a desgasta e a esgota por inteiro, porque a fonte do vazio é uma ternura assassina. Não permite o alongamento dos voos monossilábicos. A contramão do desastre. O sentido irrigado depois de alguns dias paralíticos. Ela convive com uma cicatriz que sempre sangrará. Nos momentos de maior tortura física e psicológica desconfia que é abandonada até por Deus. Sabor raquítico, dor palatável quase abstendo-a da vida. Contudo, sente-se demasiado realista e percebe, com boa dose de gratidão, que ainda há, em si, um lugar para a magia e para o amor –  não possui outra forma de ver o mundo.

A arte é feita de injustiças, das difíceis mãos da experiência. Não ao oferecimento das inglórias alheias como parte de uma farsa desatenta. Não à vaidade e à desmesura.

Seu nome é AMulheroriginal, ela ilustra seu próprio jardim e elege seus domínios. “Eu vejo a magia que se dá para extasiar-se no trato com o lúdico, o rebelde desabrochar. Esses atos de beleza não conhecem a amargura. Não posso despojar-me das premissas que me soem libertárias ainda que eu seja narrada como algo que nada tenha de artístico. Meu talento não se resume numa única obra, mas, com uma única obra, posso alcançar a glória absoluta – Deus criou-me livre”. Para ela, é tão difícil suportar a vulgaridade. Trata de lutar, dia após dia, para sobreviver, utilizando a licitude no lugar de nefastos métodos imorais ou de fraco caráter. A Doce Mulher dos Lírios é também A Colhedora de Pérolas, A Víbora Voluntariosa, Lilith.

“Vivo numa casa conquistada antes de ser o que sou. Vagueio entre o cinza, o preto, o vermelho e o branco. Falo com o amarelo.  Ensaio flores, rostos e anatomias; Deus permite-me às obras sem perguntar-me se são definitivas. Eu perambulo insubordinável e feliz sem ser um vestido de uso obrigatório entre o claro-escuro e o escuro-claro. [Sou grata à Dante Gabriel Rossetti, a Frida Kaloh, a Paola Rego, a Anita Malfatti, aos vanguardistas]. Mas há o escuro-escuro e o claro-claro que vou matizando conforme gostaria de vê-los. Desvelados volumes envoltos no liame casual – a cor só existe porque há multiplicidade. O maior infortúnio do ar é não ter matizes – o ar se basta descolorido.  Minhas pinturas são autolegendáveis: são o que desejo executar. Não é sonho de artista, porque não me sinto, estritamente, uma artista, senão uma mulher obstinada que reage, afirmativamente, aos desafios e vive para merecê-los. Vida com horas esticadas é o que peço a Deus e Ele me sussurra: “Sempre haverá lugar para quem é verdadeiro e adota a liberdade como guia”. Sendo AMulheroriginal, falo com Ele: “Meu Deus, há momentos em que me sinto fora do eixo. Mas algo maior ou mais forte me impulsiona – e, nessa força, me enlaço como se avistasse o próximo amanhecer. Aprende-se a sobreviver quando se convive com a realidade. Não há ilusão possível. Os nãos abrem as portas, os sins, ocultos e temerosos, assinalam fatias de céu. Ancorada na insistência, entro no trigo recém-molhado, sinto a maciez das palhas e toco os estigmas das espigas maduras, meus pés afundam na terra, surge-me, na mente, a fotografia de algo indelével, precioso como esse mar ensolarado que se estende ao longo do campo dourado que, ao Teu lado, de forma profundamente clara, me transporta. Só não pergunte de onde angústia me nasce. O corpo [elemento vago do qual nem sempre sei tudo] quase sempre me supera no saber das coisas, a mente me engana, o coração se perde, e, no ínterim, algo me devolve ao que fui destinada [o que me alimenta e retroalimenta], e, afinal, descubro os mistérios de estar morrendo para o corpo e nascendo para uma nova alma. Ainda que a via me seja escura eu Te ouço, desacostumada dos meus inícios”. Então ela ouve uma voz que mal reconhece ser a sua: “El arte no discute. El arte se hace con los gestos espontáneos que brillan en su propósito. Eres un tesoro inagotable y increibley. Eres pura luz y vida. Recibo y guardo con cariño tu sabiduría cuya experiencia y ingenio me suma siempre, y creo que no sólo a mí, sino a todos los que construyen contigo ese hermoso templo llamado humanidad, como si fueras un campo, con trigo sembrado creciendo al sol en el final de la tarde. Y ahora me encuentro con tu mirada y, a pesar de la niebla, hay un tótem que nos acerca. Y es la Diosa Tierra. Nossa Mãe Comum”.

Tere Tavares: escritora e artista visual, residente em Cascavel, PR, autora dos livros Flor Essência (2004), Meus Outros (2007), Entre as Águas (2011), A linguagem dos Pássaros (Ed Patuá 2014), Vozes & Recortes (Ed Penalux 2015), A licitude dos olhos (Ed Penalux 2016), Na ternura das horas (Ed. Assoeste 2017) Campos errantes (Ed. Penalux 2018), Folhas dos dias (Selo Ser MulherArte Editorial, 2020), Destinos desdobrados (Ed. Penalux, 2021) e Diário dos inícios ( Metanoia Editora, Selo Mundo Contemporâneo Edições, 2021) . Conta com publicações em antologias, jornais e sites literários nacionais e internacionais. Integra a Academia Cascavelense de Letras. Blog: http://m-eusoutros.blogspot.com/ Facebook: https://www.facebook.com/tere.tavares.1

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