Para meus avós maternos, Antônio e Ana (em memória)

A cronista do nosso núcleo familiar era minha mãe, Ilza. Após seu encantamento, há sete anos, ficamos sem a fonte privilegiada de informações acerca de nossas origens. Por meio de suas memórias ficamos sabendo, por exemplo, que meus avós maternos, Antônio e Ana, foram imigrantes nordestinos. Deixaram a cidade de Areia, no Brejo paraibano, para tentar a sorte no Rio de Janeiro, onde permaneceram até o epílogo de suas vidas.

Mainha narrava histórias de nossa ascendência até perder-se nos baixios da memória. Eu, que só conheci vovó Ana, adorava ouvir expressões como “vovô de baixo” ou “vovó de cima”; ancestrais desconhecidos que habitavam uma não menos ignorada topografia. Pena que, ocupados com as demandas da vida, que nunca foram poucas, eu e meus irmãos e irmãs quase não tínhamos tempo para incentivar dona Ilza a relembrar capítulos da crônica dos Pereira da Costa.

Há gotas de sangue e de suor de milhões de homens e mulheres nordestinos misturadas ao ferro, ao vidro e ao cimento dos monumentos e casarios que conformam a exuberante paisagem urbana das megalópoles sudestinas. Há corpos sob as construções que desabaram, por inteiro ou em parte, cujas ossadas nunca foram encontradas e identificadas, do mesmo modo que os responsáveis por essas tragédias jamais foram responsabilizados.

As histórias de sucesso nem de longe se equiparam, em número e intensidade, às tragédias vivenciadas pela legião de imigrantes nordestinos cujos esforços, para melhorar de vida, não deram certo. Milhares morreram ou foram aleijados, física e psicologicamente, vítimas de uma sociedade assolada pela violência, inclusive, e talvez principalmente, praticada pelo Estado. Os gritos que ecoam nos porões das delegacias sudestinas têm muito de sotaque nordestino.

Jovens mulheres foram exploradas e humilhadas nos requintados apartamentos da zona sul carioca. Caseiros padeceram horrores nas luxuosas casas de praia de Búzios. Na indústria e no comércio do Sul, milhões de vidas nordestinas consumiram-se em cargas e condições de trabalho escorchantes e salários desprezíveis. Os sem muito talento que não se submetiam aos caprichos de patrões e patroas tinham como alternativas a bandidagem e a prostituição.

Meu avô Antônio trabalhou até o fim de seus dias como zelador de um prédio na cidade serrana de Teresópolis. Entre seus muitos filhos e filhas, temos jornalistas, músicos e artistas plásticos. Todos muito bem-criados com o salário de seu Antônio e a aposentadoria de dona Ana. Minha mãe e meu tio Nezinho foram os únicos que não quiseram migrar para o “Sul Maravilha”. Tinham ambos, na Paraíba, amores mais fortes que o sonho da terra prometida.

Sei de médicos, juízes, engenheiros, políticos, empresários, artistas (muitos artistas, por sinal) etc. que, saídos de cidades nordestinas, construíram um futuro de fartura, em todos os sentidos, no Sul e Sudeste. Mas quando vou ao Rio de Janeiro, por exemplo, gosto de conversar com garçons, recepcionistas, taxistas, biscateiros etc. Entre eles, encontro muitos nordestinos. A maioria com um enorme desejo de voltar, “assim que as coisas melhorarem”.

Em todos eles e em todas elas vejo meu avô Antônio e minha avó Ana. Milhares de Antônios e Anas, Joões e Marias, Franciscos e Conceições etc. etc. etc. E sinto um orgulho arretado dessa legião de homens e mulheres que, através da história, vêm construindo um Brasil dentro de outro Brasil. Um país de gente honesta e trabalhadora, que canta e sorri e não perde a esperança, apesar do chicote que o destino, não raro, infelizmente, faz estalar em suas costas.

William Costa: jornalista de carreira e escritor paraibano, editor do suplemento cultural Correio das Artes, cronista do jornal A União, tem vasta experiência em veículos de imprensa e é autor do livro de crônicas e contos Para tocar tuas mãos - Chronesis.

E-mail: wpcosta.2007@gmail.com