Às vezes tenho a impressão que quase todo mundo gostaria de tirar férias de sua condição, o que seria mais ou menos como dar uma trégua na luta diária em que transformamos a existência, no plano terrestre. Digo quase todo mundo em respeito aos budistas, por exemplo, cuja serenidade repousa na observação de caminhos que levam à cessação do sofrimento originado por fatores como as carências afetivas e materiais, as doenças, a velhice e a negação da morte.

Não me importaria de deixar de lado minha biblioteca, e passar uns três ou quatro meses livre de quaisquer compromissos com leitura, principalmente aquelas obrigatórias – que materializam os tais ossos do ofício. Para usar um lugar-comum, não levaria livro algum para uma ilha deserta. Transportaria comida, água, rede, chapéu, vara de pescar e uma boa cachaça, pois nem tenho vocação para náufrago nem gosto muito de sexta-feira – prefiro o sábado.

Se por acaso viesse a sentir saudade dos livros, armaria a rede entre dois coqueiros e ficaria contemplando as gaivotas. Esses pássaros quando voam sobre o mar remetem a livros abertos, folheados pelo vento. E isso é tudo o que eu gostaria de fazer, na minha ilha esquecida: ler o mundo com os meus próprios olhos, tocando as coisas da natureza como se fossem páginas. Uma espécie de renascimento para a linguagem, para ser mais ou menos exato.

Cansa-me, às vezes, esse caso de amor; essa dependência física e psicológica que alguns de nós estabelecemos com os livros. Gosto muito de ler, mas detesto mais ainda dogmas e obsessões. Dias destes, travamos eu e uns amigos uma discussão besta, felizmente regada a cachaça, só porque eu disse que não gostava que me tachassem de intelectual. Sim, porque muitos pensam que todo mundo que gosta de ler é um ser erudito ou uma entidade intelectiva.

Até hoje não sei citar um poema de Augusto dos Anjos de cor, imagine um parágrafo inteiro da República, de Platão. Minha cabeça dá mil voltas quando me pedem para definir o que é arte ou o que é cultura. Muito mal domino o português e, do inglês, só sei dizer “ai lóve iú”. Política me dá urticária e espiritualidade – assunto que me apraz – faz muitos me virarem as costas. Então, como posso, nessa condição, autodenominar-me de intelectual?

Quarta-feira passada fui ao Shopping Sul, no bairro dos Bancários, e, como de hábito, entrei n’O Sebo Cultural, para ver se tinha alguma novidade. Dei de cara com um volume da obra em prosa (Nova Aguilar) de Fernando Pessoa. Folheando-o, chamou-me a atenção um texto no qual o poeta português anuncia uma mudança abrupta no que diz respeito ao seu objeto de leitura, substituindo os livros pelo mundo. Não só sou eu – constatei, sorrindo.

William Costa: jornalista de carreira e escritor paraibano, editor do suplemento cultural Correio das Artes, cronista do jornal A União, tem vasta experiência em veículos de imprensa e é autor do livro de crônicas e contos Para tocar tuas mãos - Chronesis.

E-mail: wpcosta.2007@gmail.com