Acabo de assistir ao extraordinário filme de animação “Com Amor, Van Gogh” (“Loving Vincent”, trailer abaixo), façanha que exigiu 125 artistas plásticos trabalhando na criação de 65000 frames, utilizando como ponto de partida as 400 telas que o “Fan Rhôrh” (pronúncia em holandês do nome do pintor) produziu em seus oito anos no ramo, além de um perfeito elenco de atores-e-modelos, que soube dar vida a vários tipos do lugarejo em que o artista terminara sua vida.

Desde “Fantasia”, produzido pela Disney em 1940, em que me deslumbrei, na infância, com a vida que o estúdio dera a obras de Stokowski, Beethoven, Stravinski, Mussorgoski etc, etc, não tinha visto nada tão ambicioso, no gênero. Van Gogh.

Lembro-me de que, muito jovem, me decepcionei ao ver, ao vivo, as telas que o Museu de Arte de São Paulo (MASP) tem, dele.
Mas o coitado, que se deprimia por viver às custas do irmão, marchand em Paris que só conseguiu vender dele uma tela, teve, um século depois, algumas de suas telas arrematadas por fortunas imensas: Íris por 53 milhões de dólares, o retrato do Dr. Gachet, por 83.

Eu tinha 15 anos quando Vincente Minelli filmou o romance (que eu já lera), “Sede de Viver”, de Irving Stone, com Kirk Douglas no papel do holandês – que lhe valeu o Globo de Ouro de melhor ator no ano seguinte, enquanto Anthony Quinn, no de Gauguin, abocanhava o Oscar. Como eu trabalhava de dia no escritório de uma loja e com isso pagava um curso de pintura à noite, tive, com livro e filme, alguns grandes momentos.

Curioso é que “Com Amor, Van Gogh”, Gauguin nem aparece, coisa que estranhei muito, pois sempre me pareceu que Vincent pirou – inclusive mutilando a própria orelha – em grande parte por causa dele. Cheguei a escrever um ensaio, “As Eloquentes Cadeiras de Van Gogh”, em 2016, em que digo, a certa altura:

“Abandonado pelo amigo, Van Gogh pinta – sintomaticamente, parece-me – o próprio assento vazio com um cachimbo, e o do Gauguin… com uma vela acesa. Caramba! Acho que não há necessidade de muita psicanálise pra sacar que esses dois objetos sobre as respectivas cadeiras (sinônimos de ilhargas, quadris) significam alguma coisa que quer ser dita em código, que elas estão nos mandando um recado. Uma fálica vela em plena ereção, e acesa, é óbvia demais. Quanto ao cachimbo, basta a forma côncava de seu fornilho pra dizer tudo. Ainda mais quando se fica sabendo que em francês ‘cachimbo’ é ‘pipe’, e que ‘prende la pipe’ é uma expressão vulgar que significa ‘sexo oral praticado num homem’, e, também (veja como as coisas são complicadas) “falhar, fracassar completamente”.

Bem, quando vi, no filme de animação, a investigação de Roulin a respeito de um possível assassinato, não suicídio, Van Gogh morto por alguns rapazes com que se teria envolvido, imaginei que minha teoria fosse, ali, se completar, daí o gênio assumindo o suicídio para defendê-los. Mas o filme termina deixando a hipótese no ar.

O importante dessa produção não é o roteiro, mas a grande beleza de retratados e de paisagens de repente vivos, com muitos closes de enorme densidade. Sempre me pareceu – pelos quadros que vi em São Paulo, e pelas cartas de Van Gogh ao irmão Théo – que são motivos da investigação de Roulin em Arles (onde Vincent mais pintou, internou-se num hospício e morreu) que ele era muito melhor na caneta do que nos pincéis.

A ligação entre artista e o irmão marchand era tanta, que Théo morreu um mês depois dele. Quem se beneficiou, ao fim de tudo, foi sua viúva, que soube aproveitar a história trágica do cunhado e faturou em cima do enorme lote de quadros estocados em seu depósito.

Coisas da vida.

W. J. Solha: romancista, poeta e ensaísta paulista radicado na Paraíba, é também dramaturgo, ator, artista plástico e publicitário, com vários livros publicados e premiados, transitando em várias frentes de nossa cultura; um artista "multimídia" por excelência.

E-mail: waldemarsolha@gmail.com